O governo brasileiro lançou em setembro de 2024 o ConversAI Studio, um “ChatGPT governamental” que promete revolucionar o serviço público através de inteligência artificial 100% nacional. Operando nos data centers do Serpro com investimento de R$ 710 milhões, a plataforma já processa 2 bilhões de tokens e reduz tempo de análise de processos de 6 anos para 1 ano em testes pilotos. Esta iniciativa estratégica busca romper com uma dependência custosa: entre 2014 e 2025, o Brasil gastou R$ 23 bilhões com big techs americanas, recursos que poderiam ter construído 86 data centers nacionais. O ConversAI Studio representa não apenas avanço tecnológico, mas reposicionamento geopolítico que coloca dados sensíveis sob controle soberano brasileiro.
A decisão emerge de vulnerabilidades concretas. Como alertou o deputado Orlando Silva: “Se as cinco empresas do Vale do Silício desligarem seus equipamentos aqui, vai ter um apagão digital no Brasil”. O ConversAI Studio é a resposta institucional a essa fragilidade, operando com modelos de linguagem open source em território nacional e desenvolvendo capacidade autônoma de inovação em IA.
O ConversAI Studio não é apenas um chatbot, mas o topo de uma arquitetura técnica sofisticada em cinco camadas desenvolvida pelo Serpro. A estrutura demonstra ambição que vai além de copiar soluções estrangeiras, criando ecossistema completo de IA generativa governamental.
Na camada base, operam sete modelos de linguagem de grande porte: Mistral (francês), Gemma 3 (Google), DeepSeek (chinês), Llama (Meta), Qwen (Alibaba), GPT OSS (OpenAI) e Gaia – este último desenvolvido pela Universidade Federal de Goiás especificamente adaptado ao português brasileiro. Todos rodam exclusivamente nos data centers do Serpro em Brasília e São Paulo, sem conexão externa. Como enfatiza Welsinner Brito, Superintendente de Arquitetura Corporativa do Serpro: “Os servidores rodam dentro da nossa infraestrutura, e só engenheiros do Serpro têm acesso físico e operacional”.
A segunda camada disponibiliza APIs de inteligência artificial que facilitam integração com sistemas existentes, democratizando acesso à tecnologia para desenvolvedores governamentais. A terceira camada introduz o Model Context Protocol (MCP), protocolo em desenvolvimento que permite criar agentes de IA capazes não apenas de gerar informações, mas executar tarefas propriamente ditas – diferencial competitivo significativo. “O agente de IA consegue realizar uma tarefa propriamente dita”, explica Ronaldo Agra, gerente da Divisão de IA Generativa, diferenciando-o de chatbots convencionais que apenas respondem perguntas.
A quarta camada oferece aceleradores de negócio, ferramentas que agilizam entregas de soluções personalizadas para cada órgão. No topo, o ConversAI Studio apresenta interface conversacional intuitiva, similar ao ChatGPT, onde servidores públicos podem “conversar” com normativos e documentos em linguagem natural, sem necessidade de conhecer qual regulamento específico trata de determinado assunto.
A capacidade de processamento impressiona: 2 bilhões de tokens atualmente, com planos de duplicar a capacidade dos data centers nos próximos cinco anos. A tecnologia RAG (Retrieval-Augmented Generation) permite que cada órgão suba suas bases de conhecimento específicas, criando assistentes conversacionais customizados sem compartilhar dados entre instituições ou com plataformas externas.
A obsessão com segurança de dados não é retórica, mas arquitetura fundamental do sistema. O Serpro opera o AIBio, uma das maiores bases biométricas do mundo, com 300 milhões de imagens faciais e 3 bilhões de impressões digitais. Esta infraestrutura processa 50 milhões de validações biométricas mensais com acurácia de 99,9%, detectando milhares de tentativas de fraude diariamente através de IA treinada para identificar deepfakes e material sintético.
A filosofia de “soberania digital” opera em quatro níveis, segundo Welsinner Brito. Soberania operacional: dados e modelos rodam exclusivamente em território brasileiro, impossibilitando requisições legais de governos estrangeiros ou subordinação a legislações como o CLOUD Act americano. Soberania técnica: desenvolvimento em curso do SerproLLM, modelo nacional próprio batizado informalmente de “LLM Tupi-Guarani”, com requisitos mínimos de 10 bilhões de parâmetros e capacidade multimodal. Soberania cultural: treinamento com dados brasileiros que compreendam “matizes culturais, questões políticas e contexto geográfico” nacionais. Soberania de dados: governança própria sobre critérios de seleção e qualidade dos dados de treinamento.
A conformidade com a LGPD não é adequação posterior, mas privacy-by-design. Ariadne Fonseca, Diretora do Serpro, enfatiza: “Construímos os nossos serviços voltados para a privacidade desde a nossa criação”. A Portaria SGD/MGI nº 5.950/2023 estabelece obrigatoriedade de armazenar dados sensíveis (sigilo fiscal, bancário, comercial) exclusivamente na Nuvem de Governo, criando barreira regulatória contra vazamentos para jurisdições estrangeiras.
Os números de segurança cibernética são alarmantes e justificam o investimento: 8.000 tentativas de violação em agências governamentais apenas em dezembro de 2024, aumento de 50% em relação a 2023. O ConversAI Studio opera com certificações ISO/IEC 27001 (Segurança da Informação) e ISO/IEC 27701 (Privacidade), além de selo NIST, instituto americano de padrões tecnológicos.
Os resultados dos testes pilotos surpreendem até céticos. Na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), o sistema SID PGFN (Sumarização Inteligente de Documentos) processa petições judiciais extensas gerando resumos precisos que reduzem drasticamente tempo de análise processual. Daniel Saboia, procurador da PGFN, declarou-se “surpreendido positivamente com a qualidade” e o “alto nível de precisão nas análises jurídicas”.
No CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fazendários), a IA Iara já analisa 75 mil processos administrativos, com projeção de reduzir o tempo de julgamento de 6 anos para 1 ano. Esta compressão temporal não é meramente administrativa: representa bilhões em arrecadação tributária acelerada e redução de custos processuais para contribuintes e governo.
O IBGE, instituição piloto desde setembro de 2024, utiliza o ConversAI Studio para análise de dados estatísticos e automação de fluxos administrativos. Em 24 de junho de 2025, IBGE e Serpro formalizaram parceria estratégica no Programa Nacional de Inteligência e Governança Estatística e Geocientífica, com biênio 2025-2026 focado em construir plataformas analíticas para políticas públicas preditivas. A Receita Federal está em fase de experimentação, com aplicações previstas para análise tributária e suporte à implementação da Reforma Tributária.
A Secretaria de Gestão de Pessoas desenvolveu assistente conversacional capaz de interpretar mais de 20 mil documentos sobre gestão de pessoas no serviço público, permitindo que servidores obtenham respostas instantâneas sem conhecimento prévio da legislação aplicável. O sistema Gov.br ultrapassou 150 milhões de usuários, com 72 milhões utilizando validação biométrica, demonstrando escala de implementação.
A parceria mais significativa foi anunciada em 10 de setembro de 2025 durante o Google Cloud Summit Brasil. O Google firmou acordo estratégico para integrar o Gemini for Government na Nuvem do Serpro através do Google Distributed Cloud (GDC), ambiente isolado que opera fisicamente nos data centers brasileiros. Alexandre Amorim, presidente do Serpro, sintetizou: “Por meio da parceria com o Google Cloud, o Serpro encontrou uma maneira de alcançar o progresso sem sacrificar a soberania nacional”.
A arquitetura é engenhosa: equipamentos Google ficam instalados nos data centers do Serpro, mas sem conexão com servidores externos. Engenheiros brasileiros mantêm controle operacional total, enquanto o Serpro acessa tecnologia de ponta do Gemini, modelo multimodal de última geração. Esta solução resolve dilema aparentemente insolúvel: como acessar inovação das big techs sem comprometer autonomia estratégica.
Importante esclarecimento: DeepSeek não é parceria formal, mas utilização de modelo open source chinês sob licença MIT. Mídia frequentemente reporta como “parceria”, mas tecnicamente o Serpro apenas opera o modelo DeepSeek em sua infraestrutura, sem relação comercial ou transferência de dados para a empresa chinesa. Esta distinção é crucial: uso de código aberto não cria dependência ou vulnerabilidade, diferentemente de contratos com provedores proprietários.
A consulta pública planejada para selecionar parceiro no desenvolvimento do LLM nacional representa próximo degrau na autonomia tecnológica. O edital exigirá modelo com mínimo de 10 bilhões de parâmetros, capacidade multimodal (texto e imagem), treinamento com dados brasileiros e possibilidade de fine-tuning e continuous training. Carlos Rodrigo Fonseca Lima, gerente do Centro de Excelência em Ciência de Dados e IA, define o objetivo: “Construir um novo modelo com dados brasileiros, garantindo soberania operacional, tecnológica e cultural”.
A iniciativa divide especialistas entre entusiasmo estratégico e ceticismo pragmático. O contexto de dependência é inegável: R$ 23 bilhões gastos com big techs americanas entre 2014 e 2025, sendo R$ 10,35 bilhões apenas no último ano. Pesquisador Evgeny Morozov alerta: “Estamos nos tornando mais dependentes, pagando cada vez mais por serviços que deveriam ser desenvolvidos sob domínio do país que os consome”.
O Plano Brasileiro de Inteligência Artificial aloca R$ 23 bilhões entre 2024 e 2028, com R$ 710 milhões específicos do Serpro para infraestrutura de nuvem. A ambição é clara: transformar o Brasil em líder global de IA com slogan “IA para o bem de todos”, capacitando 115 mil servidores até 2026 (20% do funcionalismo federal).
Céticos apontam gap tecnológico: enquanto Claude 3 opera com estimados 175 bilhões de parâmetros e GPT-4 com mais de 1 trilhão, os modelos do ConversAI Studio operam em escala significativamente menor. Professor Alexandre Delbem, do ICMC-USP, adverte: “A burocracia pode gerar descompasso entre planejamento e realidade tecnológica. Áreas como infraestrutura computacional exigem investimentos contínuos para se manterem competitivas”.
O histórico do Serpro adiciona complexidade ao debate. Auditoria do TCU em 2018 identificou ineficiências operacionais, preços superiores ao mercado e prejuízos de R$ 597 milhões entre 2007 e 2016, exigindo quatro aportes de capital totalizando R$ 700 milhões. Contudo, 2024 marca virada dramática: lucro recorde de R$ 685 milhões (crescimento de 52%), receita líquida de R$ 3,93 bilhões e maior participação nos lucros da história. Esta recuperação sugere que reformas estruturais surtiram efeito, mas levanta questões sobre sustentabilidade e real competitividade versus conveniência política.
A comparação técnica com chatbots comerciais revela contrastes. Em testes especializados, Claude obtém pontuação 69.9, ChatGPT 68.4, enquanto outros ficam abaixo de 50. O ChatGPT processa contextos multimodais (texto, imagem, voz, busca online) com marketplace de aplicações e disponibilidade global 24/7. Claude 3 Opus processa 200 mil palavras simultaneamente com foco em Constitutional AI para segurança ética. O ConversAI Studio não compete nesses parâmetros, mas oferece vantagem insubstituível: dados nunca circulam fora da jurisdição brasileira.
Isabela Rocha, do Fórum BRICS+ Tecnologia, questiona: “Onde nós, brasileiros, podemos promover nossos valores e preservar nossa cultura? Isso não acontece se a infraestrutura não for nossa e se a regulação não ocorrer no Brasil”. A ministra Luciana Santos (MCTI) enfatiza: “Não se trata apenas de adotarmos tecnologias estrangeiras e sermos somente consumidores, precisamos desenvolver soluções nossas”.
Os desafios são monumentais: escassez de especialistas em IA competindo com salários do setor privado, gargalo global de GPUs para processamento, custos elevados de manutenção a longo prazo, e velocidade de inovação das big techs que investem US$ 10-15 bilhões anuais em P&D. Analistas pragmáticos defendem abordagem híbrida: soberania em áreas críticas (defesa, segurança, justiça), parceria regulada em áreas não-sensíveis, foco em interoperabilidade e padrões abertos.
O ConversAI Studio transcende debate puramente tecnológico, situando-se em encruzilhada entre autonomia estratégica e pragmatismo econômico. A solução já demonstra viabilidade técnica com casos de uso concretos reduzindo anos de processos burocráticos para meses, validando biometria de milhões diariamente e democratizando acesso a conhecimento jurídico-administrativo complexo.
A questão central não é se o Brasil pode desenvolver IA nacional – os resultados em PGFN e CARF provam que sim. A questão é se deve concentrar recursos escassos nesta corrida tecnológica ou se abordagem híbrida seria mais eficiente. R$ 23 bilhões do PBIA representam escolha política com custo de oportunidade em saúde, educação ou ciência básica.
O contexto geopolítico confere urgência à iniciativa. Com BRICS controlando 40% da economia mundial e tensões crescentes em cadeias de suprimento tecnológico, países emergentes buscam reduzir vulnerabilidades estratégicas. O Brasil posiciona-se como referência no hemisfério sul com nuvem soberana única na região.
O sucesso dependerá de continuidade política além de ciclos eleitorais, capacidade de atrair talentos em mercado competitivo, e equilíbrio delicado entre inovação ágil e governança responsável. Se bem-sucedido, o ConversAI Studio pode catalisar ecossistema nacional de IA, gerar empregos qualificados e posicionar o país em fronteira tecnológica. Se fracassar, confirma ceticismo sobre capacidade estatal de competir com gigantes privados em velocidade da inovação digital.
A aposta está lançada. Os próximos anos revelarão se soberania digital brasileira é estratégia visionária ou ambição que subestimou complexidade de competir com recursos ilimitados do Vale do Silício. Uma certeza permanece: a inação também tem preço, medido em R$ 23 bilhões já transferidos para empresas estrangeiras que controlam infraestrutura crítica nacional.
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