Estamos vivenciando uma era paradoxal na tecnologia. Enquanto as ferramentas de desenvolvimento evoluem exponencialmente, uma crise silenciosa avança na engenharia de software. Programadores estão gradualmente perdendo a capacidade fundamental de raciocinar sobre problemas complexos e implementar soluções robustas. O que aconteceu com a arte de projetar software?
A chegada das inteligências artificiais, que prometia revolucionar a produtividade, trouxe consigo efeitos colaterais preocupantes. Ao mesmo tempo, metodologias ágeis que deveriam dar leveza ao desenvolvimento foram corrompidas a ponto de se tornarem ferramentas de microgerenciamento. O resultado? Sistemas cada vez mais frágeis, vulneráveis e mal estruturados.
Neste artigo, vamos explorar as origens dessa crise, entender como chegamos até aqui e, principalmente, discutir como podemos recuperar os fundamentos que fizeram da engenharia de software uma disciplina respeitada. Prepare-se para uma viagem no tempo que revelará a história não contada do colapso da engenharia de software.
A Origem do Caos: A Primeira Crise do Software
Para entender o presente, precisamos revisitar o passado. No final da década de 1960, quando computadores ocupavam salas inteiras e a programação era feita em cartões perfurados, surgiu o que ficou conhecido como “a crise do software”.
O termo apareceu pela primeira vez em 1968, durante uma conferência na Alemanha, onde especialistas concluíram que o desenvolvimento de software estava completamente fora de controle. Os projetos atrasavam sistematicamente, orçamentos estouravam e os sistemas frequentemente falhavam sem explicação aparente.
O código era desorganizado, sem padrões ou separação de responsabilidades – basicamente um amontoado de instruções costuradas no improviso. O pensamento dominante resumia-se a: “Se funcionou, deixa assim”. A manutenção era um pesadelo e qualquer alteração mínima podia quebrar o sistema inteiro.
Este cenário caótico levou a comunidade técnica a um consenso importante: era necessário criar métodos, princípios e estruturas formais para lidar com a complexidade crescente. Era hora de parar de escrever código improvisado e começar a projetar software de verdade.
As Décadas Formativas: Estruturação e Métodos
Se os anos 60 terminaram com o software fora de controle, a década de 70 começou com um senso de urgência técnica. A programação passou a ser tratada como uma disciplina estruturada, com estudos, métodos e debates sérios sobre como desenvolver sistemas sustentáveis.
Em 1970, Edsger Dijkstra publicou um artigo revolucionário denunciando o uso desenfreado do comando GOTO como responsável por códigos ilegíveis e impossíveis de manter. Sua proposta de programação estruturada baseava-se em três pilares simples: sequência, condição (if/else) e repetição (loops).
Dois anos depois, David Parnas introduziu o conceito de encapsulamento de decisões, defendendo que módulos de software deveriam esconder seu funcionamento interno e oferecer interfaces limpas e protegidas. Este conceito se tornaria fundamental para a orientação a objetos que viria anos depois.
As linguagens de programação também evoluíram, afastando-se do assembly e adotando ferramentas mais sofisticadas. Pascal ganhou popularidade no meio acadêmico por incentivar clareza e modularização, enquanto a indústria ainda utilizava predominantemente COBOL, FORTRAN e assembly.
A Revolução da Orientação a Objetos
Os anos 80 marcaram uma mudança de mentalidade: tratar software como algo que necessita de arquitetura e engenharia. A programação orientada a objetos, que havia surgido nos anos 60 com Simula 67 e sido refinada nos 70 com Smalltalk, começou a ganhar força com C++ e Objective-C.
A proposta era clara: quebrar o software em partes menores, reutilizáveis e isoladas, cada uma com uma única responsabilidade. O programador deixava de ser mero executor de instruções para se tornar um arquiteto de soluções, capaz de raciocinar sobre problemas e implementar soluções elegantes.
Neste período surgiram os embriões do que mais tarde seria conhecido como princípios SOLID, e a comunidade começou a documentar boas práticas de design de código, reconhecendo que existem formas melhores e piores de escrever software.
A Era de Ouro da Engenharia de Software
Os anos 90 e início dos 2000 representaram o auge da engenharia de software. Em 1994, foi publicado o livro “Design Patterns” (Padrões de Projeto), catalogando 23 padrões que se tornaram referência obrigatória. Pela primeira vez, a comunidade falava a mesma língua técnica.
Em 1995, o Java revolucionou o mercado com sua promessa de “escreva uma vez, rode em qualquer lugar”, espalhando-se rapidamente pelo mundo corporativo e consolidando definitivamente a orientação a objetos como paradigma dominante.
Os anos 2000 trouxeram ainda mais avanços:
- O C# surgiu como resposta da Microsoft à revolução do Java
- Robert Martin formalizou os princípios SOLID
- O Manifesto Ágil (2001) propôs uma abordagem mais flexível e colaborativa
- Eric Evans introduziu o Domain-Driven Design (2003)
- Robert Martin publicou “Clean Code” (2008), que virou a bíblia moderna da programação
- Jeff Bay apresentou os “Object Calisthenics” com nove regras para código coeso
Parecia que a engenharia de software havia alcançado a maturidade suprema. Tudo tinha nome, método e propósito. No entanto, essa aparente perfeição escondia um problema fundamental: estávamos transformando princípios em dogmas e padrões em obrigações.
O Surgimento do Over-Engineering
No auge da excelência técnica, surgiu um novo vilão: o over-engineering – o excesso de engenharia e complexidade desnecessária. Muitos programadores começaram a confundir complexidade com senioridade. Uma simples tela de login podia ter 18 camadas, cinco interfaces, sete factories e um command.
As boas práticas deixaram de ser ferramentas e viraram muletas de vaidade. No entanto, antes que a comunidade pudesse refletir sobre este problema, o mundo foi atingido pela recessão global de 2007-2008, e de repente a preocupação das empresas passou a ser sobreviver, não ter uma arquitetura elegante.
A Era da Velocidade e a Degradação da Qualidade
A partir de 2010, com a recuperação econômica e a explosão dos smartphones, iniciou-se uma corrida desenfreada pela presença digital. Frameworks robustos como Spring ganharam força, mas em vez de corrigirmos os erros do passado, continuamos cometendo os mesmos pecados.
Startups pequenas implementavam arquiteturas complexas dignas de grandes corporações. O over-engineering continuava forte, mas agora enfrentava um novo adversário: seu irmão gêmeo, o under-engineering.
O Manifesto Ágil foi distorcido em muitas organizações. A daily virou interrogatório, a sprint virou corrida maluca, o Kanban virou planilha de microgerenciamento. O desenvolvedor voltou a ser um mero executor de tarefas, como na década de 60. A entrega tornou-se o único valor importante.
Sistemas começaram a ser desenvolvidos sem estrutura alguma: regras de negócio em controllers, classes “service” que faziam tudo, desde enviar e-mails até consultar bancos e processar pagamentos. O importante era funcionar e chegar ao mercado antes da concorrência.
O Impacto da IA na Engenharia de Software
A pandemia em 2020 acelerou ainda mais a digitalização. O software tornou-se infraestrutura essencial, e a pressão por entregas rápidas intensificou-se. Foi neste contexto que surgiram ferramentas como GPT-3 (2020) e GitHub Copilot (2021).
A promessa era sedutora: digite um comentário e receba código funcional. Logo, as IAs generativas estavam em todo lugar, gerando, explicando e refatorando código. Porém, começaram a aparecer efeitos colaterais preocupantes: código duplicado, vulnerabilidades, soluções de procedência duvidosa e sistemas frágeis.
A questão fundamental – com quais dados essas IAs foram treinadas? – revela o problema central: elas foram treinadas com o código que existe na internet, incluindo todos os antipadrões e práticas questionáveis que acumulamos ao longo das décadas.
Recuperando a Arte de Projetar Software
O cenário atual é desafiador, mas não irreversível. Para recuperar a engenharia de software, precisamos:
- Equilibrar velocidade e qualidade: Entender que código sustentável não significa over-engineering, mas também não pode ser apenas uma colcha de retalhos funcional.
- Usar IAs como ferramentas, não substitutos: As inteligências artificiais devem ampliar nossas capacidades, não substituir nosso raciocínio crítico.
- Resgatar princípios fundamentais: Coesão, baixo acoplamento e responsabilidade única não são conceitos antiquados, mas essenciais para sistemas escaláveis.
- Descomplicar o que se tornou complexo: Muitos conceitos valiosos foram sobrecarregados com implementações excessivamente complexas. É hora de voltar às raízes.
- Investir em educação contínua: Os fundamentos da engenharia de software precisam ser constantemente revisitados e ensinados às novas gerações.
O verdadeiro desafio não é apenas entregar código que funciona hoje, mas criar sistemas que possam evoluir por anos, adaptando-se a mudanças e mantendo-se resilientes.
Dê o Próximo Passo na Sua Jornada Técnica
A crise que enfrentamos na engenharia de software é, acima de tudo, uma oportunidade de renascimento técnico. É hora de questionar práticas correntes e resgatar o que há de melhor em nossa disciplina.
Se você é um desenvolvedor experiente, considere mentorar os mais jovens, compartilhando não apenas soluções, mas raciocínios. Se está começando na carreira, busque entender os fundamentos antes de confiar cegamente em soluções geradas por IA.
Vamos construir uma comunidade que valoriza tanto a velocidade quanto a qualidade, que entende que bom código não precisa ser complexo, mas precisa ser pensado. O futuro da nossa indústria depende da nossa capacidade de equilibrar inovação com fundamentos sólidos.
Faça parte dessa transformação! Comece hoje mesmo revisitando os princípios de design, questionando suas próprias soluções e contribuindo para um ecossistema de software mais saudável e sustentável.
Perguntas Frequentes
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